Conto: A grande sacada

Série Autonomia Espiritual

Intersecções

Matheus jamais poderia imaginar estar onde estaria agora. E foi exatamente neste lugar que pôde fazer a revisão das escolhas de sua vida em momentos decisivos, porém aparentemente aleatórios, digamos assim, mas que o fizeram culminar nesta situação inimaginada há poucos meses.

Nascido em berço de ouro, como se costuma dizer, a vida lhe trouxe facilidades que lhe pregaram uma grande peça. Por outro lado, perdeu a mãe ainda bebê de uma doença terminal muito grave. Sua irmã, três anos mais velha, foi uma grande amiga. Seu pai, empresário de sucesso, era um homem rígido e taciturno, além de frio e calculista. Do modo dele, acreditava que seu amor e cuidado se dava através da preparação dos filhos para herdar o grupo empresarial que construiu a duras penas. Portanto, ao invés de lhes nutrir com carinho e amor, lhes direcionava fortes críticas e cobranças descabidas, o que gerou em ambos, de maneiras diferentes, marcas profundas e cicatrizes indeléveis. 

Obviamente que a educação dos irmãos foi a melhor possível. E Matheus logo que se formou em Administração de Empresas assumiu o cargo de CEO da empresa junto ao pai. Mas ele tinha outros sonhos e planos. Conheceu Rafaela num jantar que sua irmã deu para apresentar seu namorado Erick à família. Rafaela era a irmã mais nova de Erick. Foi uma espécie de amor à primeira vista. Matheus e Rafaela viveram uma paixão arrebatadora enquanto sua irmã, Vitória e Erick, se casaram e tiveram um filho, Guilherme.


Porém, alguns anos depois, Matheus resolve sair de carro com Guilherme para visitar Rafaela, e um terrível acidente acontece num cruzamento, fazendo com que o carro capote várias vezes, deixando o menino preso às ferragens, o que impede que ele seja resgatado com vida. 

Esse acidente marca uma ruptura nos laços daquela família. A irmã, Vitória, mãe de Guilherme, culpa impiedosamente Matheus pelo acidente de carro, já que ele gostava de dirigir em alta velocidade e o sobrinho, de apenas 6 anos, estava no banco da frente com Matheus, na direção do acidente que tirou a vida do sobrinho. O relacionamento apaixonado entre Matheus e Rafaela se desfez também, tendo em vista que ela se sentia responsável pela morte do sobrinho, por ter insistido que Matheus o levasse para visitá-la naquela manhã.

Alguns anos mais tarde, Matheus vem a conhecer, em uma viagem de negócios, a médica pediatra Rosana, casada com Ricardo e que, por sua vez, também havia passado por uma trágica perda pessoal, a de seu filho natimorto, após complicações no último trimestre de gestação da esposa. Esse fato abalou as bases do casamento e deixou Rosana profundamente entristecida, voltando todas as suas energias à carreira de pediatra à qual exerce com extrema dedicação, paixão e maestria.

Fato é que quando Matheus e Rosana se conhecem em Recife, isto viria a mudar o destino de ambos. Inevitavelmente, logo surge um interesse além do que seria esperado para uma mulher comprometida e para um homem tão reservado e aparentemente distante e introspectivo quanto o Matheus pós acidente.

O encontro que nada teve de fortuito, aconteceu por ocasião de um incidente com Roberto, o amigo de Matheus que, ‘coisa do destino’, se engasgou com uma espinha de peixe quando a médica passava tranquilamente pela calçada do restaurante. Foi ela que, prontamente, o acudiu com presteza, firmeza e feminilidade.

Daí em diante, o amigo de Matheus, gentil senhor de meia idade, agradecido pelo gesto, pediu o contato de Rosana a fim de retribuir a gentileza, e a convidou para que fosse jantar, juntamente com seu o marido, em seu restaurante. Porém, o marido de Rosana não pôde comparecer e ela foi ao jantar desacompanhada. Lá, para sua surpresa, encontrou Matheus sentado à mesa com seu amigo Roberto.

A atração era inevitável. O destino aparentemente os havia pregado uma peça. Afinal, como poderiam ficar juntos? E como poderiam conseguir não sentir tamanho encantamento? Quem nunca?

A história daí em diante, seguiu por bifurcações, encontros e desencontros, intersecções que são muito comuns na vida de todos nós e nos exigem escolhas e renúncias em várias áreas de nossas vidas, diariamente. 

Pense, querido (a) leitor (a), em alguma situação atual, no aqui e agora em que você esteja passando que possa exigir uma tomada de decisão que implique perdas e ganhos, renúncias e escolhas de porte maior. 

Num simples abrir e fechar de olhos, numa mínima fração de milésimos de segundos, a nossa vida pode mudar completamente. Como isso impacta você?

Pois bem: a vida de Matheus e de Rosana passou exatamente por essa transformação. Aliás, a deles e a de todos os envolvidos direta e indiretamente com suas escolhas. Porque, muitas vezes, não escolhemos diretamente, mas as circunstâncias interferem nas nossas tomadas de decisões e, a partir disso, precisamos nos reposicionar. 

Matheus encontrava-se naquele momento refletindo que há alguns meses sua vida estava estabilizada no velho padrão conhecido e repetitivo, adaptado a uma rotina, algumas regras impostas e criadas por ele mesmo, conformado com um determinado sistema de crenças, valores e de uma sociedade e status quo vigente, normas sociais esperadas, enfim, estava tudo aparentemente sob controle. E agora, eis que se encontrava encarcerado por um crime que não havia cometido.

De qualquer forma, foi a ocasião em que encontrou para refletir sobre a consequência de tantas escolhas que naqueles momentos pareciam adequadas e, talvez, tivessem até mesmo sido. Ou estariam de acordo com os padrões exigidos? Era Matheus o homem tão bem resolvido, seguro e descolado que havia forjado para si mesmo? Ou isso tudo fora apenas uma fachada muito bem construída pelo seu ego a fim de protegê-lo dos outros e de si próprio?

Nada disso, entretanto, importava ou fazia sentido. Apenas o aqui e agora e o que restaria daqui para frente. Seus pensamentos e sentimentos estavam passando por uma enorme mudança. Nunca tinha sido capaz de se encarar tão profunda e verdadeiramente. 

– Precisei chegar no fundo do poço. A roda gira – pensou em silêncio contemplativo.

Matheus não sabia que todas as escolhas pregressas o levariam a refletir sobre tantas situações e áreas de sua vida naquele que seria considerado o pior local que alguém poderia estar: a prisão. Um lugar em que, tecnicamente falando, vai parar todo tipo de pessoas.

Mas, quanta gente não se encontra presa em suas próprias cadeias e amarras emocionais, espirituais, mentais? Não seriam esses os piores tipos de aprisionamento?

Foi exatamente naquele momento, naquele local, naquela condição de vida que Matheus pôde acessar ao seu interior mais verdadeiro pela primeira vez, como nunca havia se permitido anteriormente. 

Até então, devido a sua criação, aos abusos cometidos pelo seu pai, suas perdas, dificuldades de encarar as consequências de suas escolhas, ao excesso de culpa e autocrítica que carregava consigo, à impossibilidade de liberar perdão e autoperdão, havia sido encapsulado ao longo desses anos numa redoma de defesas que o fazia se proteger tanto dos outros, quanto de si mesmo, impedindo de acessar seus afetos e emoções mais íntimos e profundos e viver de forma que aparentava aos outros uma fachada muito bem construída e estruturada de pessoa segura de si, forte, firme, arrogante e até distante, fria emocionalmente, por vezes implacável.

Porém, durante esse processo de novos encontros que a vida foi lhe proporcionando, Matheus foi redescobrindo o seu self, se permitindo acessar a verdadeira natureza humana. Como um processo de descascar uma cebola e a cada camada fossem caindo suas máscaras e defesas até chegar ao miolo, representando seu self, sua verdadeira essência, seu eu interior. 

Esse miolo, querido (a) leitor (a), todos nós temos e precisamos de coragem para chegar lá. Convido você a se colocar nessa disposição de fazer essa jornada, essa viagem interna.

Na próxima semana, finalizaremos esta série que, para mim, mais uma vez, foi uma grande dádiva e oportunidade riquíssima de cocriação e interlocução com pessoas tão especiais e queridas. Não tenho palavras para descrever minha imensa gratidão e emoção. 

Eu gostaria, então, de já adiantar que a proposta do nosso último encontro será bem diferente, dinâmica, de final de ano, encerramento de ciclos… tanto de uma série de artigos quanto de um ciclo de mais um ano. Mas, desde já eu convido a se questionar num link entre esses últimos artigos e o último a respeito das suas sacadas, das suas intersecções, da sua casca de cebola.

Procure ir pensando sobre a sua trajetória de vida, sobre as suas construções, desde o momento em que você nasceu até agora. O que você tem criado como defesas ou máscaras que precisam e podem ser retiradas, que estão encapsulando seu verdadeiro eu, sua verdadeira essência?

Esta é uma série que fala sobre autonomia espiritual

  • O que tem impedido você de se tornar uma pessoa autônoma em sua vida, inclusive na área espiritual. O que é que está pegando? E nas outras áreas?
  • Quais são as interseções, os pontos de intersecção que a vida lhe proporcionou e que você escolheu determinado caminho e não outro e fez com que você, hoje, possa olhar para trás e pensasse: E se? Isso paralisa você? Chateia, entristece, gera angústia?

Bem, querido (a) leitor (a): Se você escolheu esse ou aquele caminho, não adianta ficar pensando “e se” eu tivesse escolhido outro. Porque o “e se” não move para frente, o ‘e se” leva para trás, o “e se” é algo que não temos como saber… São hipóteses, fantasias criadas por nossa mente que não tem o poder de nos controlar, a não ser que a gente dê esse poder. O “e se” corrói a alma e nos mantém presos a uma possibilidade no passado que, como o próprio nome sugere, já foi. Nós escolhemos e tomamos decisões a cada momento. 

A grande sacada é a consciência de que a vida é cheia de intersecções e que precisamos descascar as camadas da nossa própria cebola para descobrir com mais clareza possível como é o nosso miolo e nos acostumarmos com ele, não no sentido de nos acomodarmos a ele (acomodação, mas sim, nos sentirmos cômodos com ele), confortáveis. Como se sentir confortável em sua própria roupa, entende?

Você se sente assim?

Em tempo: Que o verdadeiro espírito de Natal esteja com todos. Paz e luz!

Um grande beijo e até a próxima.
Com carinho,
Marcia Vasconcellos


Leia os textos anteriores da série:

1 – Conto: o doce e o cão
2 – Comunicação Multidimensional: possibilidade de cura e libertação
3 – Conto: Às Escondidas
4 – Quebra-Cabeças
5 – Curto-Circuito: Eternos buscadores
6 – Conto: Sementes da luz
7 – Cozendo o passado com o olhar no futuro
8 – Borracheiro abençoado
9 – Sacadas: Em busca da autorresponsabilidade

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